Ad image

Polêmica do Pix, fake news e a necessária racionalização das normas da Receita Federal

Publicada em setembro de 2024, a Instrução Normativa RFB 2.219/2024 tinha como objetivo aprimorar o monitoramento de transações financeiras por meio do sistema e-Financeira, em funcionamento desde 2015.

Até então, os bancos tradicionais tinham a obrigação de reportar movimentações globais acima de R$ 2.000 para pessoas físicas e R$ 6.000 para pessoas jurídicas à Receita Federal.

Assine a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas no seu email

Com a publicação da IN, esses limites foram elevados para R$ 5.000 e R$ 15 mil, respectivamente, e a obrigatoriedade de reporte foi estendida a novas categorias de instituições financeiras, como fintechs e administradoras de cartão de crédito. A norma também mantinha o formato consolidado de informações, exigindo apenas o valor total das transferências realizadas mensalmente, seja por Pix, DOC ou TED, sem detalhamento de beneficiários ou da natureza das operações.

No início de 2025, a entrada em vigor da IN RFB 2.219/2024 gerou uma onda de desinformação nas redes sociais, alimentando debates sobre uma suposta “tributação do Pix”. Alegações falsas sugeriam que a norma introduziria tributação sobre transferências realizadas por meio do sistema, o que rapidamente mobilizou a opinião pública.

Em resposta à repercussão negativa, o governo revogou a norma no último dia 15 de janeiro e, na sequência, editou a MP 1288/2025, reforçando que o Pix não está sujeito à tributação e proibindo práticas abusivas relacionadas a pagamentos por esse meio.

A tributação de transferências financeiras pelo Pix é, de fato, muito improvável. A previsão constitucional de competência para a tributação da renda se encontra no art. 153, III, da CRFB/88, que determina que compete à União instituir impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza. Não resta claro, portanto, qual seria o conceito determinado de renda e proventos de qualquer natureza.

Ao tratar do IR, o Código Tributário Nacional (CTN) prevê, em seu art. 43, que seu fato gerador é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica (i) da renda, entendida como o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos e (ii) de proventos de qualquer natureza, compreendidos como os acréscimos patrimoniais que não se caracterizam como renda[1].

De acordo com a jurisprudência consolidada do STF, a materialidade do Imposto de Renda está necessariamente atrelada à existência de acréscimo patrimonial[2] auferido de forma instantânea ou ao longo de determinado período.

A doutrina também construiu, a partir da conjugação de diversos preceitos constitucionais, o princípio de renda líquida, no sentido de que a noção de acréscimo patrimonial pressupõe a verificação não só da existência de novos ingressos no patrimônio do contribuinte, mas também da exclusão dos custos e despesas necessárias à produção dos rendimentos[3].

Nesse sentido, a mera movimentação financeira não configura a materialidade do Imposto de Renda, sendo necessário avaliar, de forma geral, todas as entradas e gastos do contribuinte. Vale destacar que a Receita Federal pode, sim, utilizar as informações de movimentações financeiras para identificar possíveis indícios de riqueza tributável, mas isso depende de um processo fiscalizatório mais complexo, que vai além do simples reporte das transações realizadas.

Feitas essas considerações, é imprescindível analisar os fatores que contribuíram para os equívocos gerados pela edição da IN RFB 2.219/2024. Apesar de fundamentados em desinformação, os impactos econômicos e sociais provocados pela norma foram consideráveis: redução do uso do Pix, incremento na circulação de dinheiro em espécie e o aumento de fraudes, como golpes relacionados a boletos falsificados.

Esse cenário revela falhas nos processos decisórios da Receita Federal, especialmente no que tange à transparência e ao rigor técnico na formulação de normas que implicam novas obrigações tributárias acessórias.

A criação de regulações desse tipo exige a avaliação criteriosa dos potenciais impactos, incluindo consequências indesejadas. Desde 2021, essa análise tornou-se obrigatória por meio do Decreto 10.411/2020, que regulamenta a Análise de Impacto Regulatório (AIR) em âmbito federal. Essa exigência visa assegurar que normas de interesse geral para agentes econômicos e usuários de serviços públicos sejam precedidas de uma avaliação técnica robusta e baseada em evidências, que estime seus efeitos antes de sua implementação.

Entretanto, a Receita Federal não realizou uma AIR para a IN RFB 2.219/2024, o que também se observa em outras normas editadas pelo órgão. Essa ausência de transparência nos processos de tomada de decisão da Receita pode comprometer a qualidade das regulações editadas pelo órgão, uma vez que impossibilita a identificação e a mitigação de possíveis efeitos adversos.

A relevância da Receita Federal como órgão regulador também não pode ser subestimada. Um estudo publicado em 2024, intitulado “A evolução da produção normativa da Receita Federal do Brasil (1988-2020): análise empírica e implicações regulatórias”, evidenciou a magnitude de sua produção normativa, que totalizou mais de 13 mil normas até o período analisado. Essa quantidade reflete a influência regulatória significativa da Receita Federal no ordenamento jurídico e na economia do país, reforçando a necessidade de que seus processos sejam amparados por uma avaliação técnica rigorosa e transparente.

A falta de AIR em casos como o da IN RFB 2.219/2024 ilustra como decisões normativas podem ser tomadas sem o devido embasamento técnico, resultando em impactos negativos evitáveis e na perda de credibilidade institucional. Se uma avaliação prévia tivesse sido realizada, talvez os desgastes decorrentes da norma tivessem sido mitigados ou evitados. Assim, espera-se que, em situações futuras, a Receita Federal adote práticas mais alinhadas aos princípios da boa regulação, promovendo maior transparência, eficiência e segurança jurídica.


[1] Art. 43. O impôsto, de competência da União, sôbre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;

II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

[2] RE 855.091; RE 117.887-6; ADI 5583 e ADI 5422.

[3] Para aprofundamento no tema, ler: https://www.marizadvogados.com.br/wp-content/uploads/2020/01/Art.02-2020.pdf

Deixe um comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *